“A democracia é um jardim que precisa ser cuidado” – muitos têm afirmado há anos. Canteiros não brotam do chão e muito menos caem do céu. As ervas “daninhas”, um recurso natural de proteção do solo, não se afastam apenas com pensamento positivo. Jardins não existem by default, não são algo que já temos garantido desde o início. Dependem de mão de obra humana para existir. Em um mundo perfeito, Deus plantou um jardim para que o ser humano o guardasse (Gn 2:8), pois a manutenção e a expansão do jardim dependeriam de cuidados. Assim também é com o sistema representativo que escolhemos para governar a igreja. Ele pode ser comprometido e precisa ser preservado.
Natureza egoísta
Na selva das paixões, a exaltação do eu é um perigo sempre latente. Nossa natureza pecaminosa funciona sob a lógica do egoísmo, da competitividade nata e do apetite pela supremacia. Isso poderia ser chamado de o “pecado original”, não no sentido de um pecado inerente a nós desde o nascimento, mas em que esse foi o primeiro de todos os pecados. Lúcifer dizia, “subirei… exaltarei… e me assentarei… subirei… e serei…” (Is 14:13, 14). O egocentrismo, como a camada mais rudimentar do pecado, é subjacente a todos os demais, pois busca agradar, exaltar e proteger o eu a qualquer custo, em detrimento das outras pessoas.
A lógica do egoísmo ganha ainda mais relevo nos constantes estímulos ao individualismo na sociedade atual. Especialmente as “eu-tecnologias” (eu-telefone, eu-isso, eu-aquilo) alimentam e levam ao extremo a ideia de customização. São construídas para que se conformem ao gosto do usuário e funcionem como escravas obedientes, mas no fim terminam por escravizar seus senhores. Como nunca, vemos pessoas insones, com sérios problemas emocionais, viciadas em telas, sozinhas, arrumando brigas na internet, perturbando a igreja nas redes sociais, se afastando da família e não querendo construir uma. Como nunca, temos visto milhões tremendo no frio da solidão, sorrindo apenas para os pets, e todo esse espírito afeta a igreja como comunidade.
Política e individualismo
No âmbito do poder político e das relações internacionais, a busca pelo controle total tem sido uma tentação quase irresistível. Se o Congresso não funciona, se a corrupção carcome as finanças e a vida da sociedade, por que não entregar o poder a um líder “forte” que resolva isso? Por que não centralizar o governo nas mãos de um partido predominante? O Big Data, que é o gerenciamento dos metadados, tem sido usado por governos autoritários para controlar como nunca seus cidadãos, tanto em países ricos como nos pobres.
Para quem vê de fora, esses países controladores parecem ter mais força. Parecem avançar com mais assertividade, tomando decisões cruciais de modo mais ágil, o que resulta em vantagem estratégica no cenário global. Numa primeira vista, isso parece tão bom, que são aplaudidos por líderes populistas que sonham replicar o modelo em democracias cambaleantes. Se olharmos para a realidade americana recente, esse quadro soa cada vez mais profético.1
Modelo bíblico
Diante de todos os desafios atuais, nossa igreja foi agraciada com uma forma de governo representativa espelhada na Bíblia. Um dos primeiros atos após a libertação do Egito foi a legitimação do poder dos líderes e anciãos para julgar o povo (Êx 18:21-25; Nm 11:16-30). Desde então e ao longo de toda a história de Israel, eles exerceram controle dos assuntos públicos. No tempo de Samuel, os anciãos pediram um rei, iludidos com a miragem do poder concentrado em um “homem forte”. Abrindo um parêntese, sem querer ser anacrônico, no fascismo, a ideia básica é a da mão que segura o feixe (do latim fasces), a concentração de poderes nas mãos de um superlíder. No tempo de Samuel, os anciãos entregaram o feixe inteiro ao rei, e isso definitivamente não deu certo. Não havia prestação de contas, limitação e equilíbrio de poder. Sobraram abusos.
Contudo, mesmo no tempo dos reis, os anciãos mantiveram considerável influência silenciosa sobre os destinos da nação. Davi sabia que seus poderes eram limitados pelos anciãos e entendia que não poderia governar sem seu apoio (2Sm 5:1-3). Reis obstinados e desastrosos foram destronados ou quase ficaram falando sozinhos, como Roboão que não atendeu ao pedido sensato dos anciãos das doze tribos de Israel (1Rs 12:16). Decisões ao longo da história sagrada seguiram um modelo parlamentar de apresentação dos temas, deliberações, voto e execução (Jz 20:2). A lógica do ancionato e do modelo parlamentar também foi adotada no Novo Testamento (At 15) e por isso é seguida pelos adventistas.
Tesouro herdado
Entre as lições do passado e os desafios do presente, a Igreja Adventista do Sétimo Dia tem sido protegida por uma arquitetura representativa de líderes. Toda a estrutura organizacional é construída a partir de representantes escolhidos pelos membros. A Comissão de Nomeações, que preencheu mais de 100 cargos nos três primeiros dias da Assembleia Geral em Saint Louis, na verdade é uma construção que vem desde as comissões das igrejas locais. Isso significa que o reconhecimento dos dons e das bênçãos divinas a homens e mulheres produz um efeito “de baixo para cima”, de modo que das igrejas segue para as Associações, e destas, para as Uniões, para as Divisões, culminando na Associação Geral.
A legitimidade representativa, por sua vez, confere solidez e autoridade aos líderes escolhidos, inclusive do ponto de vista jurídico. A partir da eleição, essa autoridade não deve liderar num estilo “líbero”, mas submetida aos regulamentos votados pela mesma assembleia que a escolheu. Assim, a supremacia da lei impede uma supremacia dos homens, como ocorre nas denominações congregacionalistas, nos sistemas episcopais, nas antigas igrejas subservientes ao Estado ou mesmo nas igrejas emergentes. Alguns observadores religiosos de fora dos círculos adventistas enxergam essa bela arquitetura com admiração, pois veem o estrago causado pelas disputas pelo poder ou mesmo a anomia (o descontrole por falta de regulamentos) em suas comunidades.
Cuidando do jardim
Contudo, como adventistas, não devemos alimentar uma lógica triunfalista. As formas não são suficientes para preservar os princípios. No tempo de Jeremias, não adiantava dizer: “Templo do SENHOR! Templo do SENHOR! Este é o templo do SENHOR!” (Jr 7:4). Era preciso se render à mensagem do templo, ter o templo no coração e acima de tudo respeitar o Deus do templo. Como Jesus ensinou, é possível “jeitosamente” rejeitar o preceito de Deus (Mc 7:9, ARA). Assim, mesmo em nosso sistema parlamentar, precisamos, em humildade, refletir e tomar alguns cuidados, para o bem geral da igreja. Alguns deles:
1. Valorizar nosso sistema. Apesar das imperfeições, o sistema representativo é o que existe de melhor em termos de organização, legislação e administração eclesiástica. Ele permite a existência de uma igreja mundial, mais democrática e integrada, ainda que preservando suas particularidades regionais. Também é o melhor sistema para preservar a igreja de abusos, visto que sujeita todas as lideranças a avaliações e eleições periódicas. Portanto, se há algum problema no processo, é preciso cuidar para não condenar o sistema todo por alguma falha localizada em um indivíduo ou situação.
2. Tornar nosso sistema cada vez mais representativo. O grau de representatividade também importa. É preciso que as comissões não sejam compostas apenas por um grupo fechado de pessoas, mas que se tornem cada vez mais inclusivas e abrangentes, envolvendo representantes de toda a igreja ou de todas as lideranças e regiões. Também deve-se respeitar as regras da participação proporcional recomendada de membros não assalariados pela igreja, conforme as regras já estabelecidas sobre esse aspecto. Isso envolve estimular sem quaisquer preconceitos o envolvimento de jovens, mulheres e pessoas de todas as origens, segundo critérios aplicados isonomicamente a qualquer um.
3. Participar de forma consciente do nosso sistema. Em todos os níveis da igreja, da igreja local à Associação Geral, os membros designados para as comissões devem participar de maneira livre e ponderada. Não devem submeter sua consciência aos que têm mais apelo só por sua retórica, nem à maioria só por ser maioria, mas votar de modo maduro e consciente. A apatia manifestada na falta de participação e a participação leviana sonegam informações e perspectivas que poderiam ser úteis antes que decisões sejam tomadas. Entretanto, é essencial que os participantes estudem, conheçam bem as questões em pauta para votarem de maneira segura.
4. Liderar de modo a fortalecer nosso sistema. Aqueles que presidem comissões têm um papel fundamental para a concretização da representatividade nas comissões da igreja. Sua liderança pode ser de molde a fortalecer ou enfraquecer o sistema, distorcendo seu funcionamento e deslegitimando sua autoridade. Direcionamento excessivo pode constranger a participação e o livre fluxo de ideias e propostas. Embora deva haver deliberações positivas e condução das participações, o líder não deve ir além disso. Não deve haver um objetivo predeterminadamente forçado a acontecer. É errado “mover peças”, manipular. Em qualquer mesa ou comissão, deve deixar espaço para a condução do Espírito Santo e não impor o prevalecimento exclusivo de sua vontade, por mais que lhe pareça correta. Pode exortar, sim, mas não se impor. “Não havendo direção sábia, o povo fracassa; com muitos conselheiros, há segurança” (Pv 11:14, NAA). O bom líder não é só aquele que inspira novos líderes. É também aquele que respeita as instituições e as deixa mais fortes do que quando chegou.
5. Criar sinergia para abençoar nosso sistema. Somos uma denominação abençoada por muitos administradores habilidosos e dotados. Porém, temos também teólogos, professores, pensadores, editores, escritores, estudiosos, jornalistas, líderes de instituições, médicos, advogados, engenheiros, entre tantos outros especialistas. Temos irmãos e irmãs experientes, idosos sábios, crianças, adolescentes e jovens perspicazes. Seus ensinos, estudos, artigos, simpósios, livros, ou mesmo uma simples conversa de coração aberto pode abrir os olhos para pontos cegos. Ouvir é uma das maiores ciências. Permite identificar os problemas, dar-lhes nomes e finalmente superá-los. Não é por ignorá-los que vão deixar de existir. Recorrendo a adágios novamente, se “a democracia morre na escuridão”, ela floresce à luz de bons conselhos.
Cuidar de um jardim não é tão fácil como parece. Exige tempo, dedicação e paciência. Porém, sempre paga com resultados multiplicados. O jardim da representatividade na igreja deve ser preservado e melhorado, e esse papel cabe a cada um de nós. A negligência ou o abuso de um afeta a todos. Igualmente, a participação respeitosa abençoa a todos e fortalece nos membros a certeza de que Deus ainda dirige Sua igreja em um mundo perdidamente egoísta.
1 Ver Diogo Cavalcanti, “À sombra do decreto: Os tempos mudaram, mas Apocalipse 13 não. Entenda o cenário da crise final e realidades atuais que apontam para ela”, Revista Adventista, agosto de 2021, disponível em: https://www.revistaadventista.com.br/diogo-cavalcanti/destaques/a-sombra-do-decreto/, acesso em 9 de junho de 2022.